segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Hidrante



Hidrante em Sorocaba
É vermelho
É triste

Espelho, espelho meu - (Resgatei o abaixo de um pobre blog meu que já morreu)




Mulher ao espelho – Cecília Meireles

Hoje, que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.
Já fui loura, já fui morena,
já fui Margarida e Beatriz,
Já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.
Que mal fez, essa cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se é tudo tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?
Por fora, serei como queira,
a moda, que vai me matando.
Que me levem pele e caveira
ao nada, não me importa quando.
Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seus,
e morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.
Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro artelho.
Porque uns expiram sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho.


Hoje pela manhã olhei-me no espelho. Não me vi colorida e geométrica como a mulher pintada por Picasso nem mórbida como a de Meireles. Vi apenas a minha imagem, do jeito que a via nos outros dias como hoje: um tanto cansada e com muitas tarefas – uma delas era fazer esta resenha. Uma resenha sobre a imagem, ou melhor, sobre definições de imagem.
Segue uma das definições:
“Chamo de imagens em primeiro lugar as sombras, depois os reflexos que vemos nas águas ou na superfície de corpos opacos, polidos brilhantes e todas as representações do gênero” esta é definição formulada por Platão e descrita por Joly (1996) em “Introdução à análise da imagem”. De fato, todos somos “seres imagéticos” e não só porque vivemos em uma sociedade que valoriza a linguagem visual em detrimento das outras; mas também porque, essencialmente, a existência das imagens depende da nossa existência.
Pensando nisto e também na lembrança do objeto espelho - que me veio à mente ao ler a definição de Platão - decidi, por curiosidade, digitar no buscador de imagens o termo “espelho”. Entre outras fotos, apareceu na primeira página a reprodução da “Mulher ao espelho” de Picasso – um dos maiores expoentes do cubismo brasileiro... Por curiosidade digitei o título do quadro - agora na busca verbal - e o primeiro dos itens encontrado foi o poema de Cecília Meirelles: “quero apenas parecer bela”, escreve a poeta. “Nós mesmos somos imagens, seres que se parecem com o Belo, o Bem e o Sagrado”, escreve Joly (1996), citando a “definição” bíblica de imagem: quanto mais imagens do sagrado formos, mais próximos de Deus estaremos.
Sem o grande anseio de ser como Deus, a poeta deseja apenas “parecer bela”. Ora, em uma sociedade que prima pelas aparências e por um padrão de beleza que poucas mulheres conseguem alcançar, Meirelles descobre diante do espelho, que é uma “imagem imperfeita”; como também é imperfeito o retrato da mulher pintado por Picasso... Pergunta: o que tudo isso tem que ver com imagem e com o livro de Joly. Resposta: Tirando os meus “devaneios estudantis”, quase tudo tem que ver!
Começando pela idéia que escolhi para resenhar (acho que nesta parte de meu texto terminam os devaneios e começa a resenha propriamente dita – ou não):

Na Odisséia, Proteu era um dos deuses do mar. Tinha o poder de assumir todas as formas que desejasse: animal, vegetal, água, fogo... Usava particularmente esse poder para fugir dos que faziam perguntas, porque também tinha o dom da profecia.
Embora certamente não exaustivo, o vertiginoso apanhado das diferentes utilizações do termo "imagem" lembra-nos o deus Proteu: parece que a imagem pode ser tudo e seu contrário - visual e imaterial, fabricada e "natural", real e virtual, móvel e imóvel, sagrada e profana, antiga e contemporânea, vinculada à vida e à morte, analógica, comparativa, convencional, expressiva, comunicativa, construtora e destrutiva, benéfica e ameaçadora.
E, no entanto, essa "imagem" proteifonne aparentemente não bloqueia nem sua utilização nem sua compreensão. Em nossa opinião, isso não passa de urna aparência que destaca pelo menos dois pontos (...) O primeiro ponto é que existe necessariamente um núcleo comum a todas essas significações, que evite a confusão mental. A nosso ver, só urna reflexão, por menos teórica que seja, pode ajudar a isolar esse núcleo e enxergá-lo um pouco melhor.
O segundo é que, para compreender melhor as imagens, tanto a sua especificidade quanto as mensagens que veiculam, é necessário um esforço mínimo de análise.


No trecho acima, retirado do texto da própria Joly (1996), a autora descreve as interpretações que possam ser feitas de uma imagem como, de certa forma, “fechadas”, apesar de ser ela – a imagem – aberta e múltipla. Em outro contexto, Santaella (2005) cita que “imagens têm o caráter de uma mensagem aberta” - parafraseando Marin(1971), Brög (1978), Sauerbier (1978) . Das duas afirmações sobre o caráter polissêmico da semântica da imagem, fico a primeira, de Martine Joly.
Um dos motivos desta escolha é a associação à opinião de Eco (2001) sobre o mesmo assunto – relacionado porém com a literatura :

Há uma perigosa heresia crítica, típica dos dias de hoje, segundo a qual é possível fazer qualquer coisa com uma obra literária. Não é verdade. As obras literárias convidam à liberdade de interpretação porque propõem um discurso com muitos planos de leitura, defrontando-nos com a ambigüidade da linguagem e da vida.

O semioticista que, em outros momentos defendeu brilhantemente a “abertura” da obra literária - em “A obra aberta (1962)”; posteriormente, diante das interpretações extremistas e levianas de sua afirmação, acabou esclarecendo e posicionando-se no “meio termo”, afinal, a obra de arte pode ser aberta, mas nunca escancarada. De fato, como para Eco, para mim parece impossível que uma obra de arte, verbal ou visual, não tenha, ainda que intrinsecamente, uma intenção para comunicar. Se assim fosse, seriam as obras de arte efêmeras. E, se efêmeras, não seriam verdadeiras obras de arte. Por associação se, como Santaella, considerássemos todas as obras imagens “abertas”, o que faríamos com as imagens-obras de arte?
Voltando aos devaneios: é fato que a imagem pode ter múltiplas interpretações, também o texto pode o ter, pois a leitura de qualquer sentido depende também do receptor da mensagem e de seu contexto, mas há algo que é próprio da imagem (ou do texto) que ninguém lhe pode tirar. Há algo da poeta Cecília que é somente dela e que só espelho pode lhe dizer o que é. Há algo na mulher de Picasso que só é da mulher e que só o espelho lhe pode dizer. Há algo em mim que é somente meu e que só o espelho pode me dizer.
Embora as bruxas dos contos de fadas tivessem os espelhos como cúmplices, não seria nada mal que tivéssemos a nossa imagem como cúmplices de coisas que só elas podem comunicar... Acho que terminei a resenha-devaneio.